A Missão Constitucional: ex-terminar o Racismo

Somos de parecer - 28/12/2020 às 15:52


Somos de parecer - editorial escrito pelos sócios





O combate à discriminação e ao preconceito racial inclui-se de modo expresso e recorrente nos textos que formam o núcleo essencial da Constituição Cidadã de 1988. Conforme o texto da Carta, a dignidade da pessoa humana é fundamento da República; o extermínio dos preconceitos de origem, raça, sexo e cor um dos seus quatro objetivos fundamentais e as relações externas da Nação têm, entre seus dez princípios regentes o repúdio ao racismo. Logo adiante, nos direitos e garantias fundamentais, impõe ao crime de racismo a condição de inafiançável.





A legislação que se situa abaixo da Constituição, alicerçada neste forte arcabouço, transformou a velha Lei Afonso Arinos (Lei nº 1.390 de 1951), que prescrevia alguns comportamentos racistas na infração penal menor da contravenção (cujo efeito prático era o de uma pequena multa ao racista "contraventor"), em autênticos crimes, tratados como tal pela Lei nº 7.716, de 1989, prevendo, na série de ações que proscreve como manifestações preconceituosas, penas de reclusão e outras sanções graves como a perda do cargo público, a interdição comunicativa e a vedação de acesso à internet. 





Tamanha modificação legislativa demonstra o reconhecimento, no mundo jurídico, da gravidade do problema. Não é razoável entender que esse haja sido um problema artificialmente criado e as autoridades que o negam deviam ter um pouco mais de atenção com nossa cultura constitucional e legislativa, para evitar considerações descabidas como a inexistência de preconceito racial no País.





Nós brasileiros certamente não temos uma justificativa político-jurídica para o preconceito (como a doutrina norte-americana dos "iguais mas separados, ou o arsenal de leis que concretizavam o "apartheid" sul-africano). Aqui, o racismo sempre entrou pela porta dos fundos, a maior parte das vezes para encobrir a vergonha de termos sido o último País do Mundo a abolir a escravidão.





A sensibilidade para a existência do grave vício não decorre de mera análise de textos jurídicos. É resultante da observação da realidade das coisas. Três exemplos podem evidenciar a afirmativa:





         - a brincadeira de Milton Santos, nosso grande geógrafo, negro retinto casado com mulher tipicamente nórdica, que gostava de joias e vivia entrando em joalherias. Milton entrava depois e se aproximava pouco a pouco da esposa, debruçada em um balcão. Cresciam para ele um ou mais seguranças, até que a esposa se virava e o identificava como marido;





         - o depoimento de J. N., cliente de nosso escritório, músico de profissão, árabe descendente, vivendo em Porto Alegre que, numa discussão informal do tema, fez questão de registrar esse depoimento: "como sou confundido com negros de vez em quando e ter sofrido o preconceito, percebi, com o tempo, que meus amigos negros de Porto Alegre evitam ir, por exemplo, a qualquer shopping... Quanto a restaurantes e bares em Porto Alegre, eles têm um circuito bem restrito de lugares que sabem que não serão mal tratados...Comecem a perceber nos lugares que frequentam se há negros consumindo."





         - conversando com uma de nossas secretarias, afrodescendente (vive hoje na Alemanha), ela afirmou que a menor das discriminações sofridas era entrar em primeiro numa loja, junto com outros, e sempre ser atendida por último.





O racismo como crime deve ser averiguado e punido. O preconceito, para terminar, deve ser combatido, pela educação, que seja, neste ponto, igual para todos, sem diferenças. Acima de tudo, para que a norma legal não se transforme em "literatura jurídica", devemos desvendar e não mais suportar o comportamento enrustido, malicioso, sorrateiro, que se materializa em prática discriminatória, naturalmente resguardados os valores constitucionais de defesa e do contraditório.





Tudo isto, no entanto, sem embargo de propugnar por uma sociedade em que as pessoas não sejam distinguidas por suas características morfológicas e onde haja a afirmativa de uma única "raça", a do Povo Brasileiro. Socorra-nos o poeta Luiz Carlos Coronel:





"o que dizer ou pensar sobre o racismo/essa alegria de odiar/esse abismo/e um estúpido relevo/ de si mesmo./ Como lavar a alma?/ de quem exala/ tão torpe sentimento?/ Varrê-lo de casa/ entregá-lo aos ventos./ Ante essa recusa obtusa/ cabe a denúncia atenta./ Ser ante racista, sim/ mas sempre em busca/ do encontro./ O confronto/ eterniza o conflito./ Se formos fraternos/ o céu e a terra/ nos tornarão bem ditos.