A AMÉRICA LATINA PERDE SUA MAIOR HEROÍNA

22/11/2022 às 15:00

Morreu, no domingo, dia 20 de novembro, Hebe de Bonafini, presidente das Madres de La Plaza de Mayo. Para os que não a conhecem, ou pouco ouviram falar das Madres, segue um pouco da história dela e do seu Movimento. Também transmitimos as vivências e impressões que com ela compartilhou Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos. Ao fim do artigo, certamente os leitores concluirão que o título em nada exagera.

 

I. A Pessoa e Suas Circunstâncias

 

Hebe de Bonafini era, originariamente, uma dona de casa, com escolaridade fundamental, Casada desde os 14 anos, teve três filhos, Jorge Omar, Raúl Alfredo e Maria Alejandra. Durante a Ditadura Militar argentina, em fevereiro de 1977, seu filho Jorge Omar foi sequestrado e desaparecido pelos militares no poder e, dez meses depois, o mesmo sucedeu com Raúl Alfredo, sendo que, no ano seguinte desapareceria Maria Cepeda, esposa de Jorge Omar.

 

Foi daí que Hebe, juntamente com mães que umas, viam seus filhos serem sequestrados e “desaparecidos”, sendo que algumas jamais saberiam sequer onde foram enterrados seus corpos, cerca de 100, começaram, silenciosamente, a passear pela Praça de Maio, na frente do Palácio do governo argentino. Usavam um véu branco no qual se escrevia o nome do(s) desaparecido (s), pois muitas, como Hebe, choravam mais de um familiar. Hebe logo se destacou na liderança do Movimento, por sua capacidade extremamente carismática.

 

O Movimento começou a incomodar os ditadores, que procuraram escorraçar as Madres pela Polícia. Isso acontecia num dia e no outro elas voltavam, Hebe na frente. As Madres foram fundadas em cinco de abril de 1977 e ao longo de 45 anos jamais abandonaram esse posto. Eram brutalmente reprimidas, mas todas as 5as feiras, elas estavam lá, graças à perseverança de sua líder. Durante a Copa do Mundo de 1978, quando a imprensa internacional tomou conhecimento de sua movimentação, questionado o Governo por que não era informado a elas o destino de seus filhos e a localização dos mortos, os tiranos apenas conseguiram responder que eram “locas” e assim passaram a ser conhecidas. Conforme Jair Krischke, “loucas de amor por seus filhos e pela Justiça.”

 

Em 1987, quando o Sting visitou a Argentina, convidou as Madres a subir ao palco do Estádio Monumental de Nuñes, quando tocava a música, de sua autoria, nelas inspirada, “They Dance Allone”. Em 1988, foi a vez da banda U2 fazer questão de visitar a sede da Associação das Locas de Mayo para convidar as Madres a subirem ao palco. Hebe foi e presenteou seu famoso lenço branco, com o nome de seus filhos, a Bono.

 

Hebe nunca deixou de ser agredida, como ocorreu em 2001, quando duas pessoas invadem sua casa e, não a encontrando, torturam sua filha Alejandra, golpeando-a brutalmente e a queimando com cigarros. Em contrapartida, o mundo homenageava sua luta pela Verdade e pela Justiça, como ocorreu com a atribuição do Prêmio Unesco de Educação pela Paz ao Movimento.

 

Hoje, as Mães da Praça de Maio administram o Centro Cultural “Nuestros Hijos”, no local em que foi o Campo de Concentração em que as Forças Armadas mataram muitos de seus filhos. Continuam obtendo vitórias, ora pela localização dos filhos mortos, para que tenham uma sepultura digna, ora pela identificação, por técnicas modernas de DNA, de muitos netos arrebatados de sua família e entregues a outras pessoas.

 

Hebe morreu na data em que a Argentina comemora sua Soberania Nacional e o Presidente da República, Alberto Fernandez pronunciou as seguintes palavras de despedida: “querida Hebe, Mãe da Praça de Maio, símbolo mundial da luta por Direitos Humanos, orgulho da Argentina. Reclamando verdade e justiça, enfrentou os genocidas quando o sentido comum coletivo ia em outra direção. Simplesmente obrigado e até sempre.” A marcha 2327 foi a última que realizou, dia 16 de novembro, depois baixou no Hospital para morrer.

 

B. Testemunho de Jair Krischke

 

Hebe, em Porto Alegre, tinha um grande amigo na pessoa de Jair Krischke, o Presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, que prestou a ela e as Madres um auxílio estratégico, iniciando uma grande amizade. Essa amizade nasceu em 1980, quando o Papa João Paulo Primeiro visitou Porto Alegre. As Madres vinham procurando sem êxito, de Roma ao México, entrevistar–se com o Papa, em vários lugares do Mundo. Quando souberam que ele vinha a Porto Alegre, sem qualquer planejamento, “com a cara e a coragem”, chegaram na Cidade e tentaram, junto à Cúria, ao lado da Catedral, uma audiência com João Paulo. O Bispo da época as expulsou do recinto sagrado. Elas então ficaram refugiadas na Praça, debaixo de uma faixa que as identificavam, num canto, acossadas por policiais a cavalo (vide foto). Conta Jair que ao saber disso correu até a praça e conseguiu, junto ao deputado Aldo Pinto, que elas descansassem no seu apartamento, que ficava na Praça. “Foi aí que conheci Hebe que me pediu interferisse para ver se alcançavam a audiência”. O ativista gaúcho procurou o Bispo Antônio do Carmo (Antônio Cheuiche) e esse intermediou uma entrevista, no Gigantinho, com direito a foto, por cinco minutos, das Madres com o Papa. “A partir daí Hebe passou a ser minha amiga e por vários vezes eu a visitei e ela, quando voltou a Porto Alegre, passava na sede do Movimento (vide foto)”. A última vez que falei com ela, em na sede das Madres, em Buenos Aires, foi em quatro de agosto, numa marcha virtual (em decorrência da Pandemia), Depois, conversamos a tarde inteira e ela estava cheia de planos.”

 

“Política pública de memória”, diz Jair Krischke, é o legado que ela nos deixa. Ela e todas as Madres de toda essa América Latina que perderam seus filhos, porque lutavam por ideais políticas, vítima da maior atrocidade possível que é a desaparição das pessoas, “algo que podemos entender lendo Antígona de Sófocles”.