As Cautelas com Testemunhas de Jeová
Por Marco Túlio De Rose
04/03/2024 às 09:51

Os adeptos das Testemunhas de Jeová rejeitam transfusões de sangue, por motivos essencialmente religiosos. Tratando-se de seguidores relativamente numerosos, os tratamentos que indicam a transfusão, sem a possibilidade prática de meios alternativos, geram, para os médicos terapeutas, o seguinte e desconfortável dilema: seguem a ciência e fazem a conduta adequada, desprezando os argumentos religiosos, ou adotam a interdição e arriscam o sucesso do atendimento. Essa “escolha de Sofia” naturalmente se traduz em angústia e procura, a qualquer hora, com chance de insucesso, do advogado particular, ou do advogado do estabelecimento de saúde onde é realizado o atendimento. Este artigo pretende esclarecer o que é possível e o que não deve ser feito, em termos de conduta médica.
A matéria é regida pela Resolução nº 2.232, de 2019, do Conselho Federal de Medicina, que revogou as anteriores que tratavam diretamente ou tangenciavam o assunto. O texto, muito bem escrito, em termos jurídicos, abordando pontos essenciais e muito claro, em termos gerais, recomenda a leitura, que esclarece praticamente todas as dúvidas.
A inspiração da Resolução nº 2.232/19 é uma decisão célebre, do Juiz Federal (depois Ministro da Suprema Corte dos EUA) Benjamin Cardozo, assim redigida na sua ementa:
-“todo ser humano adulto, no gozo de suas faculdades mentais, tem o direito de decidir o que pode ser feito no seu corpo; o cirurgião que realizar uma operação sem o consentimento do paciente comete uma violência pela qual será responsabilizado, salvo nos casos de emergência, quando o paciente estiver inconsciente, e quando for necessário operá-lo sem tempo hábil para obter seu consentimento.”
Amparada nessas premissas a Resolução conceitua o que é a recusa terapêutica, que é “o direito do paciente, a ser respeitado pelo médico, desde que esse informe aquele sobre os riscos e consequências previsíveis da sua decisão”.
A recusa terapêutica pressupõe a seguinte situação de fato do paciente:
- maior de idade;
- capaz para os atos da vida civil;
- lúcido no momento da recusa;
- orientado pelo médico dos riscos da recusa
- consciente, conforme demonstrado, desses riscos.
A forma pela qual o médico se defende demonstrando que o paciente, ao formular a recusa terapêutica, preenchia os requisitos acima enumerados é preferencialmente por escrito, perante duas testemunhas, principalmente quando houver risco de morte, sendo transcrita no prontuário. Outros meios são admitidos quando o paciente não puder escrever, mas nesse caso, especialmente com uso de tecnologia de vídeo e áudio, deve ser possível a inserção no prontuário.
O médico assistente pode rejeitar a recusa terapêutica nas seguintes hipóteses:
- em situações de risco relevante, em paciente menor de idade ou adulto fora de suas capacidades mentais, ainda que manifestada por terceiros, mesmo legalmente representantes ou assistentes;
- quando a recusa caracterizar abuso de direito, ou seja:
- se colocar em risco a saúde de terceiros (o exemplo típico é o da gestante, em que sua recusa pode prejudicar o feto);
- se colocar em risco a população, por contaminação.
O médico assistente, ao rejeitar a recusa terapêutica no paciente deverá registrar o fato no prontuário médico e comunicar a circunstância ao Diretor Técnico do estabelecimento de saúde.
O Diretor Técnico, no caso, no interesse do paciente, deve imediatamente comunicar todas essas circunstâncias à Autoridade Pública competente, que pode ser policial, integrante do Ministério Público, ou membro do Conselho Tutelar.
O médico, diante da recusa terapêutica, fica com o direito de exercer a objeção de consciência.
A objeção de consciência é o direito do médico de se abster do atendimento diante da recusa terapêutica do paciente, não realizando atos médicos que sejam contrários aos ditames de sua consciência.
O médico, ao exercer a objeção de consciência deve:
- comunicar a objeção ao Diretor Técnico do estabelecimento de saúde, visando a garantir a continuidade do tratamento por outro assistente
- se o atendimento for de consultório, registrar no prontuário a objeção e dar ciência ao paciente, por escrito, podendo, se assim entender, comunicar o fato ao Conselho Regional de Medicina e, em se tratando de atendimento conveniado, às entidades gestoras do convênio (plano de saúde).
Se a situação em que foi exercida a objeção de consciência for de urgência, ou emergência, com danos previsíveis pela recusa terapêutica ao paciente, deve o medico adotar o tratamento inicialmente indicado, apesar da recusa. Esse direito é ainda mais ressaltado se a situação de emergência ou urgência implicar em perigo de morte.
A consulta a um advogado, nesses casos, é sempre benvinda, mas seria prudente que os cirurgiões e os plantonistas hospitalares tivessem em mãos roteiros como esse artigo, ou a própria Resolução CFM nº 2232/2019.