A Responsabilidade Jurídica e Suas Novas Formas

Por Marco Túlio De Rose

30/05/2024 às 11:20

A Responsabilidade Jurídica e Suas Novas Formas

          A Ordem Jurídica, desde os tempos romanos, consagra o princípio de cada um é responsável pelos seus atos ou omissões, sendo que as consequências deles decorrentes são suportáveis por quem pratica a comissão, ou a omissão.  No entanto, temperando o individualismo, desde Roma as ordens jurídicas proscrevem os comportamentos pelos quais um terceiro sofre as consequências da prática, ou falta dela, pelo indivíduo. “Nemine laedere”, expressão sintética muito feliz, provinda do Direito Romano, expressando que a ninguém é lícito molestar outrem. Daí nasce a responsabilidade civil, nome que na raiz significa a responsabilidade do cidadão, por seus atos positivos ou negativos que causem danos a terceiros.

 

              O Direito que nasce na época moderna, a partir do Século XVIII, moldou a responsabilidade civil com base na noção da culpa, ou de sua exacerbação, que é o dolo.  O dever de reparar, consequência do reconhecimento da responsabilidade civil de alguém para com outrem, nascia se o ato ou omissão praticado era expressamente desejado, daí o dolo, ou, pelo menos, ocorria porque o seu autor fora negligente, imprudente ou imperito. Quase por três séculos reinou soberana essa concepção, até que, chegando ao Século XX, sofre e vem ainda sofrendo no Século XXI profundas alterações conceituais.

 

              Primeiro, foi com o Estado, o todo poderoso aparelho que muitas vezes causava, para alguns, danos maiores que aquele provocados por seus atos, para com todos. A ideia de culpa era insuficiente para que não se cometesse a injustiça de que alguns indivíduos tivessem uma quota de sacrifício maior que os demais, desmentindo, na prática, a noção da igualdade de todos perante a Lei.

 

              Criou-se então a teoria do risco, pela qual o Estado teria de indenizar os danos causados pelas suas ações normais, quando essas gerassem prejuízos extraordinários para a cidadania, individualmente considerada.

 

              O evoluir do século passado também gerou a extensão dessa responsabilidade pelo risco para algumas relações sociais marcadas pela desigualdade, como as atividades altamente periculosas (usinas, notadamente nucleares), os meios de transporte de massa e todas aquelas intuitivamente periculosas (grandes indústrias, grandes obras de construção, grandes redes informáticas etc). Finalmente, essa ideia generalizou-se para todas as relações que envolvem fornecedor habitual e consumidor.

 

              O Século XXI sofre o imenso pacto da tecnologia da informática com seus desdobramentos do tráfego de dados pessoais e da possibilidade de utilização da inteligência artificial, impactos que notadamente geram situações impossíveis de serem enfrentadas com as concepções tradicionais da responsabilidade civil.

 

              Uma reação por outro lado se esboça, no sentido, se não para excluir a responsabilidade, ao menos para neutralizá-la, quando demonstrado que o autor formal do dano cometido tomou as providências razoáveis para que o dano não fosse cometido, mas ainda assim o foi. Importa dizer que não há aí uma retrocessão à responsabilidade por culpa, mas a constatação de que determinados danos ocorrem sem que possa, o mais prudente dos agentes, impedir que ele aconteça.

 

              Estão nesse rol uma grande parte dos acidentes aviatórios e igualmente os danos causados pela informática. Essa constatação, por outro lado, presta uma homenagem à inovação que, no atacado, traz mais vantagens sociais que os riscos decorrentes de suas práticas, embora não sejam estas imunes à intervenção predatória natural ou humana.

 

              A responsabilidade civil é uma instituição da sociedade humana e, como fator social, não pode ir contra o próprio desenvolvimento da sociedade. Neste sentido, em algumas atividades, como por exemplo as aviatórias, são geradas convenções internacionais que limitam o valor das indenizações decorrentes dos danos gerados por caso fortuito ou força maior.  Muito embora possam parecer injustas, do ponto de vista do lesado, seu intuito é de proteger a própria atividade ou torná-la suscetível de ser garantida securitariamente contra os riscos a que se submete.

 

              Essas tendências sociais impactam os conceitos tradicionais de responsabilidade civil e a forma de sua exoneração. Nas relações de consumo, por exemplo, excetuados os casos de profissionais liberais, ainda regidos pela ideia de culpa, em relação aos demais fornecedores, esses apenas podem se exonerar do dever indenizatório por dano se provarem que o evento prejudicial não aconteceu por fato seu. Em palavras mais jurídicas, o nexo de causalidade, não demonstrado, afasta a responsabilidade pela constatação de que o dano não foi causado pelo fornecedor do bem ou serviço que está na base da lesão. Caso típico do que se afirma está na inexistência de dever de indenizar, ao menos até a comunicação do fato, pela instituição financeira que é provocada a permitir um saque em conta-corrente pelo ladrão que furtou o cartão de crédito/débito do proprietário. O dano não aconteceu por causa da ação do depositário do dinheiro, mas pelo ato do despojamento e a ausência de aviso à instituição do que ocorrera.

 

                            Essas novas concepções jurídicas, contemporâneas do tempo em que vivemos, estão alterando o conceito de responsabilidade, quiçá o alargando, para efeitos de aceitar a exoneração quando comprovada uma conduta proativa do fornecedor que, malgrado isso, não alcançou humanamente evitar o dano.

 

                            A “common law”, sistema jurídico dominante, principalmente, no Reino Unido e nos Estados Unidos, tem aportado novos significados para a ideia de responsabilidade (responsability). Ao lado do sentido clássico, a responsabilidade compensatória, principalmente por dolo ou culpa (liability), entende-se existir a “accountability” e a “answerability”.

 

                            A “accountability” se refere aos deveres, por parte de quem desempenha algum tipo de atividades, de cumprir exatamente as normas que regem essa atividade. A legislação brasileira que informa o termo de consentimento dos pacientes nos tratamentos médicos, ou de autorização para utilização dos dados pessoais (fora dos casos expressamente excepcionados em lei.

 

                            A “answerability” condiz na obrigação de determinados agentes, como os profissionais de saúde e os controladores de dados pessoais, de serem transparentes nas explicações quanto aos processos em que atuam em relação aos pacientes, no primeiro caso, e os titulares de dados, na segunda hipótese. A legislação brasileira que informa o termo de consentimento dos pacientes nos tratamentos médicos, ou o direito do titular de dados pessoais de exigir, dos controladores desses dados, informação sobre a forma com que eles estão protegidos de violação e, caso essa aconteça, a comunicação imediata aos titulares para que saibam dos riscos que estão correndo, tutela esses direitos.

 

                            Questão importante é saber se o cumprimento desses deveres exonera, ou apenas abranda a responsabilidade dos profissionais da saúde, ou dos controladores. Mas isso é assunto para outro artigo, que esse já vai longo.