A Lei que Deveria Proteger Nossas Mentes Está Parada. A Tecnologia Não.

Por Raquel Barbosa

Seções - 04/11/2025 às 11:18

A Lei que Deveria Proteger Nossas Mentes Está Parada. A Tecnologia Não.
Raquel Barbosa é advogada da De Rose Advogados
Raquel Barbosa é advogada da De Rose Advogados

     Em Brasília, em alguma gaveta de uma comissão especial do Congresso, uma proposta de lei acumula poeira. Ela é uma das mais importantes e futuristas já discutidas no país, a PEC dos Neurodireitos. Do lado de fora, no mundo real, a tecnologia que essa lei deveria regular está sendo lançada em sites de crowdfunding[1] e preparada para as prateleiras do varejo.

 

     Essa é a fotografia exata do perigoso descompasso que vivemos hoje.

 

     Para entender a história, precisamos voltar um pouco. Entre 2023 e 2024, o Brasil surfou uma onda de otimismo. A proposta de emenda para proteger nossa mente, pensamentos e livre-arbítrio contra o mau uso da tecnologia avançou rápido na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Parecia que o país estava assumindo a liderança em um dos debates mais cruciais do século XXI.

 

     Então, o que aconteceu? A burocracia e a realidade bateram à porta.

 

     O avanço da PEC desacelerou até quase parar por uma combinação de fatores complexos. Primeiro, o "como fazer". Traduzir conceitos filosóficos como "privacidade mental" para um texto de lei claro e aplicável provou ser um desafio monumental. Como proteger o pensamento sem impedir pesquisas médicas vitais?

 

     Segundo o elefante na sala, o lobby. Gigantes da tecnologia e startups de saúde (healthtechs), que inicialmente observavam de longe, entraram em campo. O argumento é o clássico conflito entre regulação e inovação. O receio é que uma lei muito rígida possa transformar o Brasil em um deserto para a pesquisa e o desenvolvimento de novas tecnologias.

 

     Por fim, a realidade política. Diante de crises econômicas e reformas urgentes, uma pauta sobre o futuro, por mais essencial que seja, perdeu prioridade na agenda do Congresso.

 

     E é aqui que a história fica perigosa. Enquanto a lei anda a passos de tartaruga, a tecnologia voa em um foguete. Os dispositivos que leem ondas cerebrais para melhorar o foco, a meditação ou o sono já não são protótipos de laboratório. Eles estão se tornando produtos de consumo. Empresas estão sendo criadas com base em um modelo de negócio que envolve a coleta e a análise de neurodados.

 

     Estamos, mais uma vez, cometendo o mesmo erro que cometemos com as redes sociais, pois a tecnologia avança, cria um ecossistema, coleta nossos dados em massa e, só depois que os problemas (desinformação, vício, manipulação) se tornam uma crise, nós corremos para tentar regular o caos.

 

     A diferença é que, desta vez, os dados não são sobre o que compramos ou em quem votamos. São sobre a matéria-prima de quem nós somos.

 

     A discussão sobre os neurodireitos hoje é menos sobre os detalhes técnicos da PEC e mais sobre esse alarme que soa cada vez mais alto. A questão deixou de ser se vamos regulamentar, mas se chegaremos a tempo de proteger nossa última fronteira antes que ela seja comercializada.

 

    A LGPD, neste cenário, atuaria como um escudo fundamental, classificando esses neurodados como sensíveis e exigindo consentimento, porém ela não foi desenhada para proteger a origem desses dados, a nossa própria consciência e livre-arbítrio.

 

    Assim, a verdadeira batalha atual não está apenas no texto da lei, mas nesta corrida contra o tempo para definir se as fronteiras da mente humana serão um espaço de direitos ou a próxima fronteira da exploração comercial.

 

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[1] Crowdfunding: Termo em inglês para financiamento coletivo, popularmente conhecido como "vaquinha online". É um modelo de arrecadação de fundos no qual um projeto, produto ou causa é apresentado publicamente em plataformas online, e um grande número de pessoas ("crowd") contribui com pequenas quantias financeiras para atingir uma meta pré-estabelecida.