Crime e Castigo de Carlos Lacerda
Por Marco Túlio De Rose
04/11/2025 às 11:36
Os casos judiciários geraram grandes obras artísticas. Quem não conhece o “Julgamento de Frineia” (Gèrome) ou o “Julgamento de Sócrates” (David), para lembrar pinturas clássicas, ou do inesquecível “Mercador de Veneza”, de Shakespeare, sem contar, na literatura, o júri de Dimitri, nos “Irmãos Karamázov”, de Dostoievski, apenas para relembrar talvez os mais conhecidos.
O jornalismo tem páginas memoráveis relembrando julgamentos célebres, nesse campo da realidade rivalizando com reportagens feitas por juristas, como é o caso dos “Grandes Julgamentos da História” do recente imortal José de Castro Neves.
Quero aqui recordar um, deste último rol, caso que foi internacionalmente conhecido e que recebeu uma brilhante descrição do então jornalista Carlos Lacerda, sob o título “Crime e Paixão”. Embora a edição da Nova Fronteira esteja esgotada, os interessados certamente não terão dificuldades de achar o livro nas nossas numerosas livrarias que vendem livros usados.
A história é impressionante: corre o ano de 1958, na pacata, Suiça, mais especificamente na belíssima Genebra, onde desponta, como astro das letras jurídicas, Pierre Jaccoud. Dirigente do Partido Radical (majoritário no País); deputado; diretor de indústrias; conselheiro do Cantão de Genebra; ex-Presidente da Ordem dos Advogados do Cantão; membro do Conservatório e do Conselho da Orquestra da Suiça Romanda, casado, pai de filhos, Jaccoud era, em suma, o retrato do homem conservador bem-sucedido, como disse espirituosamente Lacerda, “autêntico artigo de exportação da sociedade suíça”.
Mas Jaccoud tinha um ponto fraco. Este ponto era Linda Baud, jovem funcionária da Rádio Genebra, de quem fora amante e que, ao longo daquele ano de 1958, o trocara por um namorado mais jovem, apesar das suas cartas, promessas e até mesmo ameaças armadas.
O namorado, André Zumbach, morava com o pai, Charles Zumbach, nos arredores de Genebra, sendo que em maio de 1958, 11h da noite, um desconhecido invadiu a casa dos dois, André não estava e matou Charles com quatro tiros e quatro punhaladas.
Assassinatos sempre são raros na Suiça e a polícia, com desajeitado modo gerado pela pouca prática, começa interrogatórios de costume, quando André Zumbach surpreende dizendo o nome de quem achava suspeito, precisamente Pierre Jaccoud, revelando que este não conseguira absorver o final de sua relação com Linda, a ponto de tê-la, supostamente, obrigado a tirar “nudes” que enviara para André, tentando dissuadi-lo a terminar o romance entre os dois.
Investigações são realizadas, a atitude esquiva de Pierre Jaccoud surpreende os policiais, a princípio incrédulos e uma revista em sua casa encontra, amassado, uma capa de chuva e um punhal marroquino com manchas de sangue, a princípio identificado como sendo sangue humano (na época não se descobrira o DNA).
Os fatos se precipitam, Jaccoud vai a júri, as maiores sumidades da Medicina Forense e da Microbiologia (descobridores do fator RH, ganhadores de Nobel etc) são convocadas a depor, a defesa de Jaccoud é exercida por “Maitre Floriot”, um dos maiores advogados da Europa ao tempo. O júri é assistido, “para se inspirar”, por nada menos que Georges Simenon, autor do imortal detetive Maigret.
A decisão final sobrevém e é condenatória, surpreendentemente a uma pena muito baixa (sete anos), demonstrando as dúvidas dos jurados, que se estivessem convictos da condenação não a fixariam em período tão pequeno. Jaccoud, expulso da Ordem dos Advogados, abandonado pelos filhos, com sua esposa, -se para um apartamento pequeno onde o brilhante advogado de outrora sobrevive orientando consultas de seus colegas.
Tentou, por todos os modos obter um novo julgamento, sempre alegando sua inocência, hoje considerada como muito possível pelos especialistas. No entanto, embora tenha alcançado vários novos julgamentos, todos foram infrutíferos, até que desistiu de seguir tentando, morrendo, na obscuridade, em 1974.
Lacerda consegue desvendar o espírito do júri suíço, que não conseguiu perdoar, muito mais do que o crime, as correspondências e manifestações piegas que o brilhante conservador do passado acabara deixando evidenciar, na tentativa de recuperar o amor perdido de Linda. Para o espírito conservador suíço, conforme o jornalista brasileiro, isso era imperdoável.
A emocionante história é descrita magistralmente, mostrando o quanto pode se aviltar a reputação de um homem público, em circunstâncias que envolvem o amor, quando se revela uma face descontroladamente humana, o que, ao invés de atrair, repele. Diz, a esse respeito, o grande jornalista, comparando Jaccoud com um dos muitos cisnes que povoam o lago Lemano que banha Genebra:
“Nesse lago no qual vogam os cisnes, que são belos, elegantíssimos dentro d’água, mas grotescos, desengonçados, quando sobem à terra. Os cisnes são irmãos das pessoas como Pierre Jaccoud. Destinam-se a vogar sempre, sobranceira, alvinitentes, sobre as águas mansas. Aí deles se têm de descer à terra e pôr-se a andar como os outros; seu andar é grotesco, suas pernas desequilibradas. Jaccoud era como um cisne do lago Lemano, condenado a sair das águas mansas em que vogava, majestoso, para subir, desgracioso, penosamente, a terra escura das encostas.”
Muito mais que o crime, a exposição do Maitre Jaccoud ao ridículo o perdeu...