JUSTIÇA RECONHECE RESPONSABILIDADE DO ESTADO EM CASO HISTÓRICO

17/10/2022 às 13:00


Por Marco Tulio De Rose





Em 1911, na província do Chaco, Argentina, vários grupos indígenas, a maioria da etnia Guiacuru, foram confinados em uma área de terras restrita, após haverem sido derrotados na chamada Conquista do Chaco, pelas Forças Armadas daquele País. A divisão havida favorecia, de modo desproporcional, colonos europeus que migravam para a região, dedicando-se à cultura do algodão. Os indígenas eram divididos em reduções, onde igualmente desenvolviam o plantio do algodão, num regime de exploração muito próximo da escravidão. Uma dessas reduções (colônias) era chamada Napalpí, batizada oficialmente como Colônia Aborígene do Chaco, que agrupava integrantes dos grupos étnicos (tribos) Pilagá, Abipon, Toba, Charrua e Mocovi.





Em 1924, o governo argentino estabeleceu um imposto de 15% sobre a colheita do algodão desses indígenas, gerando grande revolta e reações violentas dos confinados, entre as quais matança de animais domésticos e danos às colheitas dos colonos europeus. Nessa agitação, um shaman (pagé) foi morto pela polícia, ao qual correspondeu, provavelmente em vingança, à morte de um colono francês. Foi aí que Fernando Centeno, Governador do Chaco, resolveu reagir com uma feroz repressão ao povo indígena.





No dia 19 de julho de 1924, a polícia argentina, ajudada por rancheiros europeus, ingressou na área de Napalpí matando a quem encontrasse pela frente, agricultores, mulheres, velhos e crianças.  O massacre prosseguiu pelo menos ao longo de 40 dias, pois em 29 de agosto do mesmo ano, o Diretor Administrativo da Colônia de Napalpí narrava a continuidade do massacre e a sua opinião sobre a estratégia, que parecia não deixar vestígios ou testemunhas. Esse crime permaneceu absolutamente impune, as áreas de Napalpí seguiram sendo objeto de invasão pelas etnias não indígenas, mesmo que se conhecesse relatos, dos dois únicos sobreviventes que chegaram ao final do século XX, ambos convergindo em testemunhar a selvageria da polícia e dos colonos vingadores, que após matar os homens arrancavam seus testículos para servir de troféu. No mínimo 400 pessoas foram trucidadas.





Quem leu esse artigo até agora deve estar se perguntando sobre o que a Justiça pode fazer, 100 anos passados, no caso? Pois essa pergunta foi respondida através de uma ação proposta pelo Ministério Público argentino, aconselhado por sua Unidade de Direitos Humanos, que propôs, em Resistência, capital da Província do Chaco, em nome do direito difuso de conhecimento da verdade histórica, a ação no sentido de que o Estado Argentino assumisse a responsabilidade histórica pelo massacre.





A primeira questão enfrentada, a prescrição, tantos anos passados, foi afastada, pela decisão, que cada vez mais vai sendo jurisprudência universal, que os crimes contra a humanidade, como os assassinatos históricos e as torturas, são imprescritíveis.





Foi aberta a instrução processual, inclusive com a soma ao processo da entrevista filmada dos dois últimos sobreviventes de Napalpí, fornecida em 2018, um com a idade de 110 anos e outro com 114. Também juntados ao processo 15 documentos históricos da época sobre a situação naquela comunidade.





O processo concluiu com sentença reconhecendo como “fato provado a responsabilidade do Estado Argentino pela planificação, execução e encobrimento dos homicídios, agravados pela perversidade brutal e reiterada, em concurso com a submissão a um regime de escravidão, resultado no assassinato entre 400 e 500 pessoas dos povos indígenas da redução de Napalpí”. A sentença igualmente, entre outras decisões, condenou a mais ampla comunicação da sentença, nos canais nacionais e internacionais, pelo Estado; a procura de fossas, pelo Governo, onde estejam enterradas as vítimas com a restituição dos seus ossos às comunidades atingidas; a realização de um ato público de reconhecimento da responsabilidade e determinar seja realizado um planejamento de políticas públicas para reparação histórica dos povos atingidos, visando prevenir e erradicar racismo, discriminação e xenofobia, porventura existente nas áreas em que ainda habitam na região.





A tutela pelo Judiciário da verdade histórica, como um direito coletivo difuso da cidadania, é o aspecto que transcende o contexto nacional da decisão, que é importante no mundo inteiro. Os assassinos genocidas e torturadores, por mais que escapem vivos, mercê de subterfúgios, à punição merecida, podem morrer, mas com a certeza de que a História não os esquecerá. E a Justiça cuidará para que isto não aconteça.