Eles, Os Juízes, Vistos por Nós, os Advogados (Por Marco Tulio De Rose)
Publicações - 12/06/2023 às 09:00


Piero Calamandrei, o seu autor, é bastante conhecido por suas obras de processo civil. Constitui, com Francesco Carnelutti e Giuseppe Chiovenda, a Santíssima Trindade do processualismo italiano, responsáveis, no conjunto de sua obra, na expansão do reconhecimento do processo civil como uma das mais importantes dimensões históricas e ao mesmo tempo científicas da Ciência Jurídica.
Mas o toscano Piero Calamandrei, foi muito mais do que isso. Além de jurista, foi jornalista, político, soldado, professor e advogado. Como jornalista, escreveu mais de uma centena de artigos nos quais reportou a luta, muitas vezes subterrânea, dele e muitos de seus contemporâneos, contra o fascismo que naquele tempo assombrava aquela terra. Seus relatos daquele tempo servem como incentivo à luta de muitos que em outros tempos e outros lugares tiveram de enfrentar pragas semelhantes. Como político, teve intervenção decisiva na Constituição Italiana de 1946, que estabeleceu as bases democráticas pelos quais aquela Nação sepultou o período mussolinista. Como soldado, alistou-se voluntariamente para combater pela Itália na Primeira Guerra Mundial, onde começou a combater como capitão e foi sucessivamente promovido até Tenente Coronel. Como professor, os primeiros grandes estudos sobre procedimento cautelar são de sua autoria, tendo participado da redação do anteprojeto que resultou no Código de Processo Civil italiano de 1940, honrando sobremaneira a cátedra da Universidade de Florença.
Esse magnífico currículo fez de Piero Calamandrei um homem notável de seu tempo. Todavia, Calamandrei, morto em 1956, transcendeu de sua época, como advogado, ao escrever uma obra de filosofia jurídica prática, que é o livro objeto deste comentário.
O cenário forense é muito pouco conhecido, e as togas e, em alguns países, até as perucas, contribuem bastante para que seja visto, desconfiadamente, como misterioso, algo que ficou bem exemplificado pelo Presidente Lula, quando, tempos atrás, falava da “caixa preta do Judiciário”.
Calamandrei, em “Eles os Juízes”, no elogio, com profundo conhecimento de causa, explicita o que há por detrás das “misteriosas” tarefas desses que os sociólogos de agora chamam de operadores do Direito, e que ele, numa linguagem elevada mas acessível, cognomina pelos nomes populares de juízes, advogados e promotores. Acima de tudo, mostra os vícios e as virtudes de cada um dos personagens universais do teatro jurídico, pelo ponto de vista de um deles, os advogados.
O livro, grosso modo, nos seus pequenos capítulos que tornam fácil a leitura, divide-se em três partes, que se identificam ao longo de cada uma das suas divisões:
A primeira, em que se revela o escopo especulativo da obra, como já disse, uma filosofia prática, aquela que provavelmente exerciam os grandes filósofos na velha Grécia (antes que essa Ciência escalasse as everésticas altura onde hoje se situa).
A segunda, em que o advogado avalia quem ele é, quais são suas aflições e como repercutem nele os momentos gozosos da vitória, inexoravelmente sucedido pelos dolorosos das derrotas.
A terceira, na qual a cena judiciária é englobada na visão do relacionamento de suas duas principais figuras, o advogado e o juiz.
Tudo isto é dito com prosa fácil e com aquela fina ironia que, muito longe de ser agressiva, representa, como dizia Anatole France, o derradeiro cumprimento que o Humanismo dirige à Falsidade das Aparências.
Dou um exemplo dessa escrita superior, que já se encontra na introdução desta obra prima de pouco mais de 150 páginas:
“Os advogados e os juízes desempenham no mecanismo da justiça o papel das ‘cores complementares na pintura´. Opostos, é pela aproximação que melhor se fazem valer. As qualidades que mais se respeitam nos magistrados, a imparcialidade, a resistência a todas as seduções do sentimento, a sua indiferença serena, quase sacerdotal, essas qualidades, que purificam e recompõem sob a rígida forma legal as manifestações mais vergonhosas da vida, não teriam tamanho brilho se, ao seu lado, para lhes dar mais relevo, não se pudessem opor as virtudes contrárias dos advogados, isto é: a paixão da luta generosa pelo direito, a revolta contra todos os subterfúgios, a tendência – contrária a dos juízes – para adoçar pelo valor do sentimento o duro metal das leis, a fim de melhor o adaptar à viva realidade humana.”
Muitos outros tesouros guarda este que talvez seja a mais interessante obra literária que o mundo jurídico oferece aos que ele integram e aos que dele não participam. Tanto é que pensávamos transcrever vários de seus trechos em um único artigo, quando nos demos conta que isto é impossível. “Eles os Juízes”, em italiano “O Elogio dos Juízes”, é profuso em sabedoria a tal ponto que se tornou, ao menos para o articulista, quase impossível selecionar, em pouco espaço, seus melhores trechos.
Optamos por criar uma nova seção, “As Calamandrices”, que a partir da próxima edição, pouco a pouco, como quem degusta saboroso vinho, transcreverá um trecho da obra deste autêntico filho da cidade de Dante, com um breve comentário.