A mitigação do requisito da publicidade para a caracterização da união estável em relacionamentos homoafetivos. Leia artigo do Dr. Cássio Vione sobre o tema

Publicações - 20/06/2023 às 09:14

A mitigação do requisito da publicidade para a caracterização da união estável em relacionamentos homoafetivos. Leia artigo do Dr. Cássio Vione sobre o tema

A mitigação do requisito da publicidade para a caracterização da união estável em relacionamentos homoafetivos: breves considerações acerca do acórdão da apelação nº 1008683-79.2017.8.26.0562, do Tribunal de Justiça de São Paulo.

 

Há muito não se discute mais, no ordenamento jurídico brasileiro, a possibilidade de reconhecimento de uniões estáveis envolvendo casais homoafetivos. A jurisprudência é unânime em admitir essa possibilidade, quando presentes os requisitos caracterizadores da união, previstos no art. 1.723, do Código Civil[1]. Ainda que o dispositivo legal faça referência, de forma expressa, à união entre homem e mulher, o Supremo Tribunal Federal – STF, na sua missão de fiel guardião da Constituição Federal, vem repetidamente decidindo pela equiparação aos efeitos da união heterossexual em questões envolvendo não apenas o reconhecimento dessas uniões perante o ordenamento jurídico, mas também os seus reflexos no direito sucessório, previdenciário, entre outros.

 

Com o passar dos anos, no entanto, outras questões passam a ser enfrentadas pelos Tribunais, de modo a efetivamente emprestar à jurisdição, a tão almejada justiça. Exemplo disso, o decidido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos da apelação cível nº 1008683-79.2017.8.26.0562, envolvendo o pedido de reconhecimento de união estável pós-morte, de modo a erigir a companheira à condição de sucessora de sua parceira de longa data. No caso em concreto, a discussão se deu após o óbito de uma das mulheres, em razão de ter havido a abertura do inventário pelos sobrinhos da falecida, excluindo a companheira da sucessão, sob o argumento de que a relação havida entre as duas jamais fora publicizada.

 

A discussão no processo, portanto, centrou-se no fato de que, para os familiares, ambas mantinham apenas uma relação de amizade que não daria direito sucessório àquela que convivia com a falecida. A justiça paulista, ao colher a prova, considerou os demais elementos caracterizadores da união estável, em especial o fato de que ambas residiam no mesmo apartamento desde 1986 – fato comprovado pela oitiva de um dos porteiros do prédio – que mantinham aplicações e contas-correntes conjuntas, frequentavam locais públicos com amigos e mantinham outros documentos inerentes a relações afetivas, em conjunto.

 

Com isso, muito embora não houvesse para determinado grupo da sociedade – incluindo a família da falecida – a exposição social de ambas como um casal propriamente dito, o Tribunal entendeu perfeitamente caracterizada a relação afetiva, duradoura e com o intuito de constituir família.

 

A despeito dos contornos judiciais e os reflexos na Jurisprudência, fato é que a questão traz à tona aquele que talvez seja o maior dos obstáculos enfrentados por homossexuais na sua luta pela liberdade e reconhecimento pela sociedade. Ainda que haja avanços no sentido de “normalizar” as relações entre pessoas do mesmo sexo, ainda há, em determinados nichos da sociedade, exacerbado preconceito. Exemplo disso, a celeuma travada entre aquele que defende a sua condição de companheiro de Gugu Liberato, frente a mãe de seus filhos que, ao que tudo indica, apenas figurou na relação como provedora da prole, mas que eventualmente ostentava uma condição de companheira, em razão da notoriedade e desejo do apresentador de manter sua sexualidade em segredo em razão de sua condição de pessoa pública. Cada um sabe de suas angústias e dilemas pessoais e Gugu provavelmente tinha motivos relevantes para não revelar essa face de sua personalidade.

 

A história demonstra, quando as pessoas estão inseridas grupos hostis, os custos e o estigma de se identificarem como lésbicas, gays ou bissexuais acabam abafando os benefícios da chamada “saída do armário” e, como no caso analisado pela Justiça paulista, as pessoas tendem a se manter escondidas com receio do preconceito e da discriminação, até mesmo por familiares.

 

Já há estudos demonstrando que 69% dessas pessoas, quando inseridas em ambientes controladores e críticos das suas identidades, as esconderam nas comunidades religiosas de que faziam parte, 50% em instituições de ensino e 45% nos locais de trabalho. Por outro lado, os estudos demonstram que os círculos de amizades tendem a ser mais receptivos às pessoas LGBTQIA+ e, como resultado, a esmagadora maioria das pessoas do estudo, 87%, assumiram a sua orientação sexual ao seu grupo de amizades.

 

Ao fim e ao cabo, a Justiça não pode dar as costas para a realidade e deve tratar essas questões sempre com o viés dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, ainda que tenha de tratar de forma desigual, os desiguais.

 

 

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[1] Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.